O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

10.10.13

«Os carros dormem na rua»

O meu bilhete-postal de hoje vai direitinho para o Mauro (Taxitramas), grande escritor e meu companheiro de viagens, em Porto Alegre. Caro amigo: Foi um enorme prazer ter conhecido a tua conterrânea Márcia, uma jovem da minha idade que mora aí, no Bairro da Floresta (conheces?). Decidiu atravessar o Atlântico para conhecer as suas origens (italiana e portuguesa) e confessou-me que ficou apaixonada por Lisboa. As pessoas, as colinas, a comida, a luz (única), o rio Tejo… Falámos muito. De Portugal e do Brasil… Fiquei a saber algo mais sobre a tua cidade.Que foi fundada por portugueses dos Açores. E que muitos italianos e alemães também rumaram ao Rio Grande do Sul. Temos um pouco a ideia, aqui em Portugal, de que no Brasil é tudo cor-de-rosa: as praias, as mulheres bonitas, o samba, o futebol… Ao dialogar com a Márcia, mulher esclarecida e com os pés bem assentes na terra, descobrimos que esse imenso país ainda tem longo caminho a percorrer em vários domínios. Por exemplo: «É difícil fazer avançar o país, por causa da maldita corrupção. É o cancro da sociedade brasileira [apenas a brasileira?] Os políticos só fazem besteira. » Outro aspecto que a Márcia focou: a segurança. «Aqui, em Portugal, os carros dormem na rua. No Brasil, é impensável deixar os carros na rua, à noite. E não apenas em São Paulo ou no Rio de Janeiro. O fenómeno da violência estendeu-se a todo o Brasil.» Se é assim (quem sou eu para duvidar da Márcia?), como será na Copa do Mundo e nos Jogos Olímpicos? «Vai ser muito complicado. A polícia, sozinha, não vai dar conta do recado. Terá de avançar o exército…» Se calhar ando a ver muitas telenovelas, mas continuo a ter grande fascínio pelo teu Brasil. Sempre! Abraço!

9.10.13

ANTÓNIO RAMOS ROSA

António Ramos Rosa faleceu. Não vou falar sobre a sua poesia, que muito admiro (há gente muito mais habilitada para o fazer...). Apenas dar conta, em jeito de homenagem, do meu breve encontro com o Poeta: Estou em Belém... e dirijo-me à cafetaria do Museu da Marinha, junto à explanada. Aguardo uns minutinhos e... nada! Decido entrar e perguntar se conhecem o sr. António Ramos. «Conheço! É aquele senhor que está ali sentado.» Fixo o rosto e não me é estranho – só pode ser o poeta António Ramos Rosa! «É ele mesmo», confirma a funcionária, ao mesmo tempo que se dirige à mesa: «Sr. António, o táxi já chegou!» Viagem curta até à Praça Diu, no Restelo, onde Ramos Rosa vive com a esposa, Agripina, num lar da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Que sensação, conhecer e transportar um grande poeta português que muito admiro! Agora estamos ali, sozinhos no carro, e nem sei bem o que dizer-lhe... Ramos Rosa não é «pássaro» de gaiola. Quase todos os dias, à tarde, «voa» até à cafetaria do Museu da Marinha. Faz-se acompanhar de um saco com livros e é ali, naquele espaço simpático, que passa parte do tempo. No dia anterior, esqueceu-se de um livro no táxi – um livro importante que está a ler, de um crítico literário francês. O taxista foi devolver-lho e esse gesto deixou o poeta emocionado. Diz-se cansado. Afinal, passa as noites a ler e a desenhar. Depois da meia-noite, quando o silêncio convida a todas as reflexões. «Gosto muito da sua poesia. E conheço alguns versos de cor...», arrisquei, já na praça que dá acesso ao lar. Os seus olhos azuis ficam ainda mais penetrantes. Agita-se no banco de trás: «Não se importa de me acompanhar. Tenho um desenho para lhe oferecer...» Hesito, mas perante a insistência do poeta e o consentimento da funcionária do lar, lá vou... Um espaço digno e amplo com vista para o jardim, uma mesa redonda e livros, muitos livros... Retira o desenho de uma pasta, escreve uma dedicatória («na alegria deste encontro») e diz-me: «Isto não é um Picasso...; é um simples desenho criativo.» Agradeço-lhe, comovido, e prometo levar-lhe uma caneta igual àquela com que escreve uma letra miudinha. Uma caneta especial que brota poesia...

POESIA LIBERDADE LIVRE (António Ramos Rosa)

Não posso adiar o amor para outro século ... não posso ainda que o grito sufoque na garganta ainda que o ódio estale e crepite e arda sob as montanhas cinzentas e montanhas cinzentas Não posso adiar este braço que é uma arma de dois gumes amor e ódio Não posso adiar ainda que a noite pese séculos sobre as costas e a aurora indecisa demore não posso adiar para outro século a minha vida nem o meu amor nem o meu grito de libertação Não posso adiar o coração. ________________________________________ A noite trocou-me os sonhos e as mãos dispersou-me os amigos tenho o coração confundido e a rua é estreita estreita em cada passo as casas engolem-nos sumimo-nos estou num quarto só num quarto só com os sonhos trocados com toda a vida às avessas a arder num quarto só Sou um funcionário apagado um funcionário triste a minha alma não acompanha a minha mão Débito e Crédito Débito e Crédito a minha alma não dança com os números tento escondê-la envergonhado o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente e debitou-me na minha conta de empregado Sou um funcionário cansado dum dia exemplar Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço Soletro velhas palavras generosas Flor rapariga amigo menino irmão beijo namorada mãe estrela música São as palavras cruzadas do meu sonho palavras soterradas na prisão da minha vida isto todas as noites do mundo numa só noite comprida num quarto só

É para a Travessa da Queimada, sff. Conhece? Fixo o cliente e não dou o flanco: «Fica no Bairro Alto?» Mais de 40 anos a percorrer aquela artéria, como poderia não conhecê-la? Ainda sinto arrepios quando oiço aquele nome... As estórias que ...poderia contar... Talvez um dia... Quem sabe? Não! «O passado é sempre um resto», como escreveu o poeta Afonso Duarte (injustamente esquecido...): Podem encher-me os punhos de grilhetas Ou pregar numa cruz a vida minha Não é canto propício de poetas O velho medo que guarda a vinha O antigo é a doença que mais detesto É viciar o que já foi virtude! O tornar ao Passado é sempre um resto, Ou pior, uma falta de saúde.Ver mais

«Vim para Portugal por causa do meu coração»

Se eu fosse poeta, todos os dias escrevia um hino a Lisboa. Como não tenho arte e engenho para tanto, limito-me a escrever bilhetes-postais. É jovem, o português não é fluente, mas dá para dialogar: -- Não se importa que transporte o meu gato? -- À vontade! Também gosto dessa bicharada... -- Então leve-me, por favor, à Clínica Veterinára do Restelo. [Dia de greve no Metro, taxistas sem mãos a medir. Notícias cinzentas, repetidas, cujo tema forte de hoje foi a ida de um tal Machete ao Parlamento. Estou cansado!] A viagem deu para descomprimir. A jovem, de uma simpatia desarmante, arejada, bonita por fora e por dentro, mostrou-se à vontade com o taxista. Falámos de gatos (também sou entendido na matéria…) e de muito mais. Anita, de seu nome, é belga, filha de mãe grega. Gosta dos países do Sul da Europa (quem diria?). -- Como veio parar a Portugal? -- Foi por causa do meu coração… Meu deus! Ainda há gente que se apaixona por Portugal por causa do coração! Se ao menos uns fulanos que dão pelo nome de Troika (e outros rapazinhos ex-Jotas qualquer coisa…) tivessem coração?! Boa noite! Façam o favor de ser felizes… (como dizia o grande Raul Solnado).

29.3.13

Eduardo Lourenço

Não é a primeira vez que transporto gente ilustre. António Ramos Rosa, Dinis Machado, Raul Solnado, Urbano Tavares Rodrigues… e tantos outros. Sou discreto, mas fico feliz quando estabelecemos diálogo e… até com vontade de continuar a viagem… Desta vez, o meu cliente é um peso-pesado da cultura lusa e não só… Eduardo Lourenço.

Destino: Palácio da Ajuda, onde está presente a exposição de Joana Vasconcelos. O professor esquece-se do convite, deseja comprar um ingresso, mas a fila é enorme e adia a visita. Regressamos à Avenida da República (Pastelaria Versalhes).

Senta-se a meu lado, sempre muito atento aos locais por onde transitamos. «Que edifício é este?», questiona-me, à passagem por um Prémio Valmor, na Av. Fontes Pereira de Melo. Sei que estou em presença de um dos grandes pensadores portugueses, mas evito (sempre) perguntas patéticas, antes deixando a conversa fluir (ou não). Apesar disso, noto que se estabelece alguma empatia, ainda mais quando se apercebe de que li alguns dos seus livros e muitas das suas crónicas, mesmo sem conhecer em profundidade a sua obra, face à sua complexidade.

Tudo isto para dizer que foi com enorme prazer que transportei um Homem que muito admiro. Sim, ainda há portugueses por quem tenho admiração…

28.3.13

Roubar flores não é pecado

A cliente transporta um lindo ramo de flores campestres e o interior do táxi ficou (mais) perfumado. Vem da zona de Sintra, onde tem casa e uma plantação das mais variadas flores (diz-me).
-- Andam a roubar as minhas flores… -- desabafa.
-- Alguém que está apaixonado, para oferecer à namorada… -- provoco, enquanto aguardo a reacção da simpática senhora.
-- Está enganado! Quem anda a roubar-me as flores é o padre…
-- O padre?!
-- Sim, o padre…
-- Mas isso é pecado!
-- Não é, não… Roubar flores não é pecado…

26.3.12

As palavras exactas

Gosto de palavras – as palavras exactas e essenciais, como na poesia de Eugénio de Andrade. Há dias transportei um cliente da Gare do Oriente para o Parque de Saúde, junto à Avenida do Brasil. Pessoa agradável e conversadora, o professor e cientista Alexandre Quintanilha, às tantas virei para a Rua das Murtas e questionou-me.
-- Murtas? O que é a murta?
Expliquei-lhe que se trata de uma planta aromática, que gera um «fruto» que faz as delícias dos pássaros. Fruto? Não era bem a palavra que eu queria utilizar, mas à falta de melhor…
O professor veio em meu auxílio:
-- Baga, é essa a palavra?
É essa a palavra certa... Baga, que alimenta os pássaros e também se pode «mastigar».
Mastigar? Não, mascar é que está correcto. Ou seja, mastigar mas sem engolir.

27.2.12

«eu leonizo contra tudo o que é faz-se ismo»

Ao remexer o baú das velharias encontrei uma pequena brochura na qual estão compiladas crónicas publicadas em «A BOLA» nos anos 70 e 71, antes, portanto, do 25 de Abril. Reli esses textos com prazer, até porque remetem-me para a idade da inocência.
Vivia-se em plena censura e «A BOLA» não era excepção. Eu próprio testemunhei inúmeros textos cortados com o lápis azul, mas essa é outra história... Carlos Pinhão convidou vários escritores para colaborar em «A BOLA» e essas crónicas estão reunidas num pequeno livrinho, editado já depois do 25 de Abril pela então Direcção-Geral dos Desportos. Trata-se de um documento importante, até pela forma como mostra que a censura também podia ser (e foi) «fintada».
Urbano Tavares Rodrigues, Ruben A., Luís de Sttau Monteiro, Artur Portela Filho, Manuel da Fonseca, Baptista Bastos, Romeu Correia, Ruy Belo, Antunes da Silva... Estes alguns dos autores dessas crónicas esquecidas. Como aperitivo, reproduzo aqui uma parte da crónica de Baptista Bastos:

«Agora, nesta máquina onde redijo um português incompetente, o português incompetente que sou lembra-se de uma voz antiga que vem dele e dos da seita: feito ponta-esquerda de um desafio singular, onde uma data deles jogam à direita, com árbitros comprados, com aplausos pagos pelo preço do tostão, feito ponta-esquerda desse desafio – como poderia ser campeão? Ou desportista?
O Bastos, que foi amigo íntimo de um desta casa, diz-me, muitas vezes, quando a raiva me possui e a escrita não é tão livre quanto eu desejaria; quando, no futebol distrital, que é o desta nossa vida comovida e discreta, eu leonizo contra tudo o que é faz-se ismo; quando bebo de mais porque a tristeza é o vinho da vingança; quando, quando isso tudo, o Bastos, meu velho campeão falhado, que me fez e aqui estou, grita assim:
– És parvo ou quê? E então o Cândido; e então o Cândido, puto da minha vergonha! Ele também jogava na ponta-esquerda!
(E aí, companheiros, eu volto à escrita: foi ontem, é hoje, será amanhã. Campeões sem murro certo, com a certeza de que, mais dia menos dia, os Baptistas, os Bastos de todo o mundo vão acertar no semovente alvo da felicidade.)»

12.1.12

A «pianista»

Tem olhos azuis penetrantes e um rosto que já foi jovem. Entra no Cais do Sodré e tem pressa de chegar ao Parque das Nações. «Importa-se de aguardar que eu vá levantar dinheiro?» Estranho, porque não vislumbro qualquer caixa multibanco nas redondezas. Começo a perdê-la de vista, penso numa «banhada», arrumo o táxi e zarpo na sua direcção, sem dar nas vistas. Deixo de vê-la, por instantes. Sai de uma loja e prepara-se para entrar no Teatro Camões. É nesta altura que decido intervir:
– Então?!
A mulher fica embaraçada:
– Estou com muita pressa... Sou pianista e o ensaio não pode começar sem mim... Não tenho aqui dinheiro, mas fique com um cartão e passe pela minha casa...
– Sou taxista e se não me pagar dentro de cinco minutos chamo a polícia e cobro-lhe mais dez euros pelo tempo que me fez perder...
Num ápice, a «pianista» sobe as escadas e volta com o dinheirinho da «corrida».

PS – Fico a pensar no gesto daquela mulher e, por estranho que pareça, meio arrependido, até, por não lhe ter perdoado o serviço. Será que ela não tinha os cinco euros e foi pedi-los a alguém? Será que é mesmo pianista e está em crise financeira? Terá agido assim por não querer humilhar-se? Porque será que não perco esta velha mania de vestir a pele dos outros?